Uma cidade entre metafísica, onírica e barroca

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Marcel Gautherot. Palácio do Congresso Nacional, c. 1960. Acervo Instituto Moreira Salles.

A cidade como obra de arte, num registro ambíguo. O fotógrafo francês Marcel Gautherot desenvolveu uma série de imagens sobre Brasília entre o fim dos anos 1950 e o início dos 1960 – da construção aos primeiros anos da Capital Federal – quase sempre comissionado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. As fotografias foram utilizadas como divulgação de um Brasil em franco desenvolvimento, mas para além do caráter propagandístico pelo qual ficaram conhecidas, guardam características artísticas peculiares.

Esta série de imagens é o tema da tese de doutorado em História, Teoria e Crítica da Arte desenvolvida por Heloisa Espada e também será o foco da palestra que a pesquisadora ministrará na próxima terça, dia 28, no Instituto de Artes do Pará, na programação do III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia.

Na entrevista a seguir, Heloisa Espada – que integra o Centro de Pesquisa em Arte & Fotografia da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordena a área de artes visuais do Instituto Moreira Salles e participa da comissão de seleção do Prêmio em 2012 – comenta aspectos de seu trabalho acadêmico e fala de temas que serão tratados na palestra “Sombras e Arte: Brasília ‘onírica’ e ‘barroca’ – a fotografia de Marcel Gautherot”.

Como você vê a pesquisa sobre fotografia atualmente no Brasil?

Conheço pesquisas muito importantes sendo realizadas nas universidades. De modo geral, o campo de investigação é imenso e ainda há muito o que ser feito. As dificuldades são aquelas enfrentadas por pesquisadores de outras áreas das ciências humanas no Brasil: apoio institucional insuficiente e pouco respaldo social. Mas, felizmente, o campo de pesquisa é muito fértil e, a cada geração, a qualidade dos resultados tende a melhorar.

Como você chegou à escolha da série de Marcel Gautherot sobre Brasília para seu objeto de pesquisa?

Desde o mestrado, venho me dedicando ao estudo da arte realizada no Brasil nos anos 1950 e 1960. Interesso-me, sobretudo, por esse momento de transição entre as duas décadas, quando a arquitetura e a arte moderna vivem seu ápice com a construção de Brasília e o surgimento do neoconcretismo, o que é imediatamente seguido por um momento de crise dos ideais modernos, quando a ideia de autonomia do objeto artístico passa a ser questionada. É um momento de incerteza e transição. Por outro lado, interessava-me também estudar o lugar da arquitetura moderna na história da arte no Brasil, bem como a imagem do país jovem e moderno criada com a construção de Brasília. A análise das fotografias de Gautherot foi como uma porta de entrada para cada um desses assuntos.

Em seu trabalho, você afirma que Gautherot deu um sentido atemporal à imagem de Brasília. Que Brasília ele apresenta?

A Brasília sonhada por muitos intelectuais brasileiros no fim dos anos 1950, intelectuais da maior seriedade, como Lucio Costa e Mário Pedrosa que, embora tivessem divergências políticas com Juscelino Kubitschek, acreditavam na importância simbólica da construção de Brasília num país tão dicotômico e cheio de deficiências como o Brasil. Para compreender esse simbolismo, é fundamental considerar que Brasília segue os pressupostos estéticos da arquitetura moderna.

Qual a representatividade das imagens do fotógrafo, tão recorrentes em publicações sobre a cidade, para a construção da memória sobre a Capital Federal? A seu ver, como a fotografia pode construir, formular uma noção de memória?

Gautherot foi muito próximo de Niemeyer. Suas fotos foram extremamente importantes na divulgação nacional e internacional da cidade, no momento em que era preciso provar que Brasília era um projeto plausível. Suas fotos foram amplamente divulgadas em revistas e exposições realizadas no Brasil, Europa e América do Norte. Elas são muito persuasivas e ajudaram a identificar a arquitetura da cidade com a qualidade técnica e estética que se pretendia. Brasília representava a ideia de que o país não era mais um mero exportador de matéria-prima, mas também um produtor de conhecimento, arte e técnica. As fotografias de Gautherot, de modo geral, mostram as obras da cidade como obras de arte.

A segunda parte da pergunta é bastante complexa e abrangente. Desde sua invenção, a fotografia tornou-se uma ferramenta para a construção da memória individual ou social. Isso não significa que a fotografia seja apenas documento. Ela pode ser documento e também invenção.

Na sua palestra, serão abordadas as sombras características das imagens de Gautherot sobre Brasília – aspecto formal comparado às obras do pintor italiano De Chirico. O que expressam estas sombras?

Sombras são sempre elementos negativos, são obscuras e criam zonas de indeterminação. Acredito que as sombras trazem uma certa ambiguidade para as fotos de Gautherot, permitindo que algumas delas sejam vistas para além do viés propagandístico pelo qual são conhecidas. É importante considerar também que muitas dessas fotos não foram publicadas no contexto das revistas e exposições de arquitetura, vindo a público apenas recentemente, em exposições específicas sobre a obra de Gautherot.

Algumas dessas fotos não são apenas “fotografias de arquitetura” – os autorretratos, por exemplo -, elas demonstram que o interesse do fotógrafo pela cidade ia além da produção de um trabalho comissionado bem feito.

Você realiza uma leitura intertextual da série de Gautherot com escritos de intelectuais, críticos e literatos. Que conceitos costuram esta relação? Por que Brasília “onírica” e “barroca”?

O escritor italiano Alberto Moravia e o embaixador Wladimir Murtinho, por exemplo, descrevem Brasília como “surreal”, “metafísica” e “barroca”. Eles usam esses adjetivos de maneira bastante livre e sem rigor conceitual, mas, de modo geral, se referem ao aspecto artificial e monumental de Brasília, como um espaço opressor e autoritário. Ambos comparam Brasília com as paisagens de Giorgio de Chirico. Para Moravia, a estética moderna de Brasília seria apenas uma atualização do poder do Estado manifestado por meio de uma arte suntuosa e monumental, típica do barroco.

Clarice Lispector, por sua vez, descreve Brasília como o cenário de um sonho, uma paisagem artificial. O relato da escritora é bastante ambíguo. Ela sugere críticas para, em seguida, demonstrar espanto e admiração pela cidade. Acho que essa postura ambígua é muito verdadeira no caso de Brasília, sobretudo nos primeiros anos da cidade. A avaliação de Brasília é um assunto complexo e cheio de nuances. As posturas totalmente “a favor” ou “contra” são quase sempre insuficientes e simplificadoras. Acho que a ambiguidade, nesse caso, é mais rica e esclarecedora.

Algumas fotos de Gautherot também denotam essa artificialidade e a impressão de que a paisagem de Brasília é irreal. Acho possível estabelecer conexões entre o discurso ambíguo de suas fotos e o ponto de vista de Clarice Lispector, por exemplo.

SERVIÇO: Palestra “Sombras e Arte: Brasília ‘onírica’ e ‘barroca’ – a fotografia de Marcel Gautherot”, dia 28 de fevereiro (terça), às 19h, no Instituto de Artes do Pará, na programação do III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. Entrada franca.

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