RETROSPECTIVA – 2015: A imagem e o tempo

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Com o objetivo de encontrar obras que estabelecessem dinâmicas de mobilidade da imagem, a 6ª edição do Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia trouxe o tema “Tempo Movimento”.

Desde que eram somente mídias analógicas, a fotografia e o cinema sempre foram referências conceituais mútuas. Porém, com explosão da tecnologia digital, uma convergência dessas mídias fez com que o processo se acentuasse e, assim, vemos hoje uma forte aproximação da linguagem fotográfica com a audiovisual.

That_crazy_feeling_in_America - Foto - Marco A.F.
That crazy feeling in America, de Marco A.F., premiado em 2015

A diferença entre as mídias, suas individualidades e suas identidades lhes empurraram para um sistema de parceria, no qual algo que uma linguagem não tenha em sua natureza, é facilmente absorvido da outra, se complementando. O que foi visto na sexta edição foi justamente isso, narrativas visuais mais fluidas, de caráter multimídia, principalmente com a elasticidade de uma imagem digital.

O JÚRI

A comissão de seleção foi formada pela fotógrafa e pesquisadora no campo da imagem, Lívia Aquino, doutora em Artes Visuais e mestre em Multimeios pela UNICAMP. Ela, que coordena e leciona na pós-graduação em Fotografia da FAAP-SP, realizou a primeira palestra da programação da 6ª edição. “Enunciados de um mundo-imagem [ou o que poderia ser um selfie de todos nós]”, trouxe uma reflexão que evidenciou um amplo sentido para o fotográfico no modo de vida contemporâneo, apontando um hibridismo tanto entre os sujeitos dessa história como pelos meios utilizados para se fazer o que ainda pode ser nomeado como fotografia.

Marisa Mokarzel, curadora, crítica e pesquisadora em Artes também integrou o júri. Ela é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e mestre em História da Arte pela UFRJ, além de professora e pesquisadora do mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura e professora de História da Arte, ambos da UNAMA.

Val Sampaio, artista visual, produtora e curadora independente, foi a terceira integrante da comissão. Ela é professora do Instituto de Ciências da Arte da UFPA, na faculdade e no mestrado de Artes Visuais. É mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e também tem pós-doutorado em Poéticas Digitais pela ECA-USP.

 

ARTISTA CONVIDADA

“Diante das cidades, sob o signo do tempo”, foi o nome da mostra de Jorane Castro, artista convidada da edição. Ter uma cineasta como homenageada reforçou o objetivo do Diário Contemporâneo em aumentar o diálogo da fotografia com as outras linguagens e ultrapassar as fronteiras entre elas, tendo como resultado uma produção artística mais hibrida.

Jorane é diretora, roteirista, produtora e professora do curso de Cinema e Audiovisual da UFPA. Ela coordena a Cabocla Produções e desenvolve pesquisas na área da linguagem audiovisual, privilegiando a Amazônia.

O que foi visto na exposição foram trabalhos inéditos da artista, desde fotos em preto e branco, uma fotografia urbana e muito sombria, na qual a artista transformava as pessoas em personagens das suas sequencias fotográficas; além experimentações atuais com a câmera do celular. Algumas micronarrativas ganharam um movimento muito interessante no suporte do vídeo.

O bate-papo “Fotografia, cinema e o tempo” foi um relato das experiências da cineasta, que desde muito nova esteve envolvida com o fazer fotográfico, reconhecendo que sua referência estética passa muito pela conexão com a fotografia de Belém.

Foto: Victor Saverio

PREMIADOS E SELECIONADOS

Os selecionados e premiados refletiram os questionamentos mais diversos a respeito do tempo, sua inconstância e força na vida. 400 trabalhos foram enviados, um número que cresceu em relação às quatro edições anteriores com tema.

“Prêmio Tempo Movimento” foi para “That Crazy Feeling In America”, do gaúcho Marco A. F., uma instalação composta de doze fotos e um vídeo. A série apresentou paisagens e situações comuns ao imaginário dos EUA. Imagens e textos foram extraídos de filmes hollywoodianos problematizando as possibilidades de reconfiguração do movimento fílmico em imagens e textos que, deslocados de seu contexto original, adquirem temporalidades e significações distintas.

Já o “Prêmio Diário Contemporâneo” foi para a obra “Loess”, da paraense Marise Maués. A performance foi produzida em 2015, na Ilha ribeirinha de Maracapucu Miri, município de Abaetetuba, de onde ela é egressa. Nela a artista se propôs a ficar por sete horas ininterruptas no leito de um igarapé. Relações com outras linguagens e novas sintaxes na representação fotográfica foram vistas neste trabalho.

Por último, o “Prêmio Diário do Pará” foi para a instalação “Horizonte Reverso”, do paraense Dirceu Maués, que desde 2003 desenvolve trabalho autoral nas áreas da fotografia, cinema e vídeo, os quais têm como base pesquisas com a construção de câmeras artesanais e utilização de aparelhos precários. O trabalho premiado foi uma parede de câmeras escuras empilhadas que apontavam para o mesmo lugar, em uma experiência na qual a imagem perfez um caminho de volta, em direção à imaterialidade.

Além dos premiados, estiveram presentes na exposição, as obras dos selecionados Andrea D’Amato (SP), Carolina Krieger (SP), Daniela de Moraes (SP), Edu Monteiro (RJ), Elaine Pessoa (SP), Felipe Ferreira (RJ), Pio Figueiroa (SP), Gui Mohallem (SP), Guy Veloso (PA), Isis Gasparini (SP), José Diniz (RJ), Solon Ribeiro (CE), Júlia Milward (RJ), Karina Zen (SC), Lara Ovídio (RN), Marcelo Costa (SP), Marcílio Costa (PA), Pedro Cunha (PA), Pedro Veneroso (MG), Sergio Carvalho de Santana (CE), Tiago Coelho – Régis Duarte (RS), Tom Lisboa (PR), Tuca Vieira (SP) e Victor Saverio (RJ).

Ramon Reis, Véronique Isabelle e Rafael Bandeira foram as três participações especiais que também integraram a mostra.

Experimentações na oficina de Ionaldo Rodrigues. Foto: Iza Rodriguez

AÇÕES

“Escavar, recordar: narrativas fotográficas a partir de reapropriações e laboratório de Cianotipia” foi o workshop realizado por Ionaldo Rodrigues. Nele, o artista propôs discussões a partir de leituras de imagens e experimentações dos participantes com a Cianotipia, processo de impressão fotográfica desenvolvido no século XIX. A ideia foi se aproximar do passado e experimentar novas possibilidades com a imagem fotográfica.

Philippe Dubois, um dos principais pesquisadores no campo da estética da imagem, esteve presente em Belém para ministrar a palestra “De Etienne-Jules Marey a David Claerbout, ou como o tempo fotográfico jamais deixou de ser assombrado pelo trabalho do movimento da imagem”. Ele debateu sobre essa visão dominante que estruturou diversas oposições entre as linguagens. Em sua palestra ele observou que nos anos 70, as coisas pareciam bem entrincheiradas entre a fotografia e o cinema.

O PROJETO

Em 2019, o Diário Contemporâneo comemora uma década de atuação. Ele se tornou um dos grandes editais de competição do país, além de consolidar o Pará como um espaço de criação e reflexão em artes.

O Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia é uma realização do Jornal Diário do Pará com apoio institucional do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, do Sistema Integrado de Museus e do Museu da UFPA; colaboração da Sol Informática, parceria da Alubar e patrocínio da Vale.

O corpo que habita a floresta (ou a floresta como parte constitutiva do corpo)

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Por: Brenda Taketa

“Que corpo é esse que eu carrego comigo”, questiona Marise Maués, ganhadora do prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia de 2015

Ainda aos dois anos de idade, quando se mudou com a família da ilha em que nasceu para a porção mais urbanizada de Abaetetuba, a artista Marise Maués viveria talvez a primeira das principais mudanças que, décadas depois, seriam refletidas – como fragmento de memória, como contentamento do reencontro e reflexão do corpo “atual” – em dois trabalhos feitos na mesma região, o Nóstos e o Loess, o último contemplado com o Prêmio Diário Contemporâneo de 2015 e que este ano será reexibido como parte da Coleção do projeto.

Do centro urbano de Abaetetuba, onde viveu perto dos pais e de oito irmãos do final dos anos 1960 até meados de 1990, Marise sempre retornava com a mãe à ilha de Maracapucu Miri, pois o desejo de ver os filhos se educarem formalmente na cidade era tão grande quanto a saudade que ela sentia do lugar no qual nascera, deixara parentes e aprendera o ofício da coleta de produtos como o açaí e da pesca de peixes e camarões regionais.

Dessas primeiras memórias até o começo do trabalho como artista o trajeto foi longo e passou por um casamento, o nascimento e a criação dos dois filhos, a aprovação num concurso público para trabalhar noutro município do interior e depois a transferência para capital, a graduação no curso de Geografia, o estudo de fotografia por meio de oficinas e uma nova formação na faculdade de Artes Visuais, entre outras experiências que jamais poderão ser resumidas num parágrafo.

Em meio à intensidade de tantas vivências, manteve o hábito de retornar com frequência à Maracapucu Miri, lugar em que expressou por meio da fotografia, do vídeo e da perfomance a relação do corpo com o tempo, com o ambiente e a história, que produzem a identificação dessa “persona ribeirinha que resiste ao cotidiano urbano da cidade de Belém”.

“Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar” (Gilberto Gil)

 Foi da nostalgia – “prazerosa, não triste”, explica –  desses reencontros com a ilha que o “Nóstos” foi criado.

Posteriormente exibido na mostra “Pequenas cartografias (e 2 performances)” do Prêmio Diário em 2013, o trabalho identifica o próprio corpo de Marise com o corpo de uma árvore de mututi, encontrado próximo a um igarapé.

“Em um de meus retornos à ilha do Maracapucu Miri, me deparei com o velho pé de mututi que emerge do leito do igarapé. Sua aparência esguia e sinuosa revelada pela maré baixa me suscitou a aparência de um corpo feminino desnudo. Com essa constatação quis eternizar minha existência naquela árvore, pelo que cosi suas vestes e com ela envolvi seu corpo e deixei-a no seu lugar de sempre resistindo ao regime cordato das marés. Chegará o dia em que o velho pé de Mututi quedar-se-á no leito do igarapé em obediência a lei que rege qualquer ser vivo”, relata Marise no dossiê de apresentação do trabalho.

Loess, de Marise Maues
Loess, de Marise Maues

A árvore, que segue vestida e em pleno processo de transformação pelas variações no clima, as inter-relações do ecossistema e das mudanças pelo tempo, continua a ser periodicamente fotografada pela artista.

“A árvore representa o meu corpo que está sofrendo a intempérie. É o meu corpo que está lá”, comenta.

“Um homem nunca é o mesmo, permitido-lhe uma existência”

Décadas depois de se mudar a Belém e, diante de uma vida que inclui ser mulher e sustentar afetiva e financeiramente  a família, Marise conta que, certo dia, depois de uma discussão que poderia ser banal em sua rotina, teve o corpo tomado pela reflexão “que corpo é esse que eu carrego comigo?”.

Do questionamento à performance, o intervalo incluiu apenas o retorno à ilha da sua história, na qual se propôs a ficar, dessa vez com o próprio corpo, por sete horas ininterruptas no leito de um igarapé, com a finalidade de receber se expor aos regimes de enchente e vazante da maré. Para isso, vestiu-se de branco, cor sujeita a mudanças pela influência das águas características da região e do tempo que as rege.

“Adentrar em um igarapé em um ato performático, passível a ação de agentes naturais possibilitou a materialização imagética de ter meu corpo tecido em camadas que se sobrepunham com o passar das horas, utilizando como cenário o lugar que me viu nascer, crescer e com quem até hoje tenho laços estreitos de convivência, portanto um lugar de afeto”, relata.

Deu ao trabalho o nome de “Loess”, conceito trazido da geologia para definir um tipo de solo arenoso, inconsistente, sedimentado, como referência ao corpo atual e uma reflexão sobre a fragmentação do homem contemporâneo como “ser Loess” – formado por múltiplas identidades em constante processo de modificação.

A OBRA “LOESS” INTEGRA A COLEÇÃO DIÁRIO CONTEMPORÂNEO DE FOTOGRAFIA, EXIBIDA NESTA VII EDIÇÃO.