Mestre e doutora em Artes Visuais pelo PPGAVI do Instituto de Artes da UFRGS, com pesquisas sobre arquivos fotográficos e compartilhamentos de imagens via web, Flavya Mutran, atualmente é professora do Departamento de Design e Expressão Gráfica na Escola de Arquitetura da UFRGS, em Porto Alegre (RS), onde vive desde 2009.
Ela integrou a comissão de seleção do 9º Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia do qual também é artista convidada. Trabalhos conhecidos como EGOSHOT, BIOSHOT e DELETE.use serão apresentados na mostra “Lapso”.
Na entrevista a seguir, Flavya conversa sobre a sua relação com a fotografia e com o nosso mundo mediado por imagens.
Seus trabalhos abordam muito a questão da fotografia como elemento construtor de memorias. Seriam as fotografias as histórias da representação?
De certa forma sim, já que de um jeito ou de outro, fotografias acabam representando alguma coisa ou alguém, certo? Se pensarmos em fotografias como aquilo que opera com a nossa noção de tempo, de espaço, de escala, e de tantas outras formas de presentificações, então elas são mesmo empreendimentos memoráveis. Aliás, essa é uma maneira ótima de olhar para fotografias: ter a devida consciência de que elas não são testemunhas fiéis dos acontecimentos, ainda que teimosamente a gente adore se deixar enganar por elas.
Fotografias e fotografados representam, apresentam, inventam. Tem sido assim desde o princípio da História da Fotografia.
A internet se tornou uma grande enciclopédia virtual e você mergulhou nela em pesquisas que tem como foco desde a figura humana até o “apagamento” desta. O que te levou a investigar esse assunto?
Se para alguns a fotografia enquanto linguagem, miniaturizou e transformou o mundo numa versão portátil, a internet é sua plataforma de embarque e desembarque. Ela tem sido o ponto de partida dos meus últimos trabalhos não apenas pelo viés enciclopédico, mas principalmente porque parte da metodologia de acesso aos canais da rede envolve algum tipo de relação PALAVRA + IMAGEM e isso sim move meu trabalho.
Foi da relação de interdependência entre texto e fotos, que comecei a olhar como as pessoas se comportam e como transformam a si mesmas em lugares, IPs localizáveis de várias partes do mundo.
Mapear endereços virtuais e fotografar essas autorrepresentações, para mim, é quase o mesmo que fazer uma viagem para algum território diferente do meu sem, no entanto, precisar que eu tire os pés de casa.
Assim, o melhor da interdependência palavra-imagem na web é a possibilidade de construir relações de sentido diferentes para uma mesma imagem, alterar os pontos de observação sem mudar o ponto de vista inicial do fotógrafo precursor de determinada cena. Gosto de pensar que criar apagamentos ou sobreposições de elementos visíveis em fotografias do passado são alternativas de futuro para narrativas tidas como encerradas. É como se eu convidasse outros olhares para atuar em novas fábulas em cenários já conhecidos.
Atualmente vivemos em um mundo com o qual nos relacionamos através das imagens, mas, ao mesmo tempo, também nos fazemos presentes produzindo conteúdo visual diariamente. Qual seria então o papel cultural da fotografia para você?
Segundo Paul Ricoeur, nossa relação com o tempo é feita da mistura entre o histórico e o ficcional. Nesse sentido, o imaginário é fundamental pois a ficção de certa forma é também histórica, inerente a todos nós. A fotografia, cada vez mais acessível e democrática, é uma riquíssima linguagem para construção do imaginário, seja factual, histórico ou ficcional, certo? Através dela é possível criar discursos que misturam vivências e vocabulários pessoais com repertórios e dinâmicas coletivas, e é daí seu papel cultural tão relevante. Cada um de nós pode assumir-se como fotógrafo e, portanto, como narrador. A fotografia, então é esse canal (auto) discursivo. Este, aliás, é o mote que o Mariano Klautau Filho criou para o edital dessa edição do Prêmio, “Realidades da Imagem, Histórias da Representação”, testando e talvez atestando em que medida a fotografia está a serviço dos dois extremos do imaginário contemporâneo.
Em muitos dos seus trabalhos há o uso de suportes diferentes como vídeo, gravura, instalação, entre outros. Eu percebo todos eles como desdobramentos a partir da fotografia. É correto afirmar isso? Por que?
Sim, todo suporte que eu adoto como meio deriva de uma matriz fotográfica. Sou uma legítima representante da espécie HOMO PHOTOGRAPICUS, descrita por Michel Frizot como aquele tipo de criatura que aprendeu a ver e se expressar através de lentes. Mas para ser bem honesta, a fotografia como meio apenas não basta. Nunca bastou para mim. Ela sempre foi rápida demais enquanto ferramenta de produção de imagem, daí que nunca me dei por satisfeita de encerrar assuntos depois do disparo da câmera. Sempre procurei entender o tempo de maturação da imagem após a captura, seja no laboratório químico, escavando negativo, criando camadas sobre o papel ou transferindo imagem para tela ou metal. Tudo procurando uma maneira de permanecer no campo das maquinações da imagem.
Como você enxerga a nossa relação atual com as imagens? Há quem diga que vivemos uma saturação de selfies, mas não seriam elas tentativas de autoconhecimento?
A principal atração que fisga nossa atenção na web é a imagem. Fotografias e vídeos são as iscas perfeitas para aumentar o tempo de navegação. É a partir de imagens que nos colocamos diariamente à mercê de um sistema codificado que regula todo e qualquer tipo de trânsito de informação em rede, mesmo que a maioria de nós sequer saiba quais são as implicações reais desse vínculo. Não é à toa que o termo mais adequado para definir nosso papel na web seja o de USUÁRIO, tão próximo ao consumo de drogas, justamente porque imagem alicia, vicia, pode causar dependência.
Não dá para saber em que medida o excesso de imagens ao qual somos constantemente bombardeados atrapalha ou contribui para o nosso autoconhecimento. Fato é que desde a popularização dos dispositivos móveis de acesso à internet as fronteiras entre o espaço público e o privado sofreram grandes rupturas. A partir da época da chamada WEB 2.0, lá pelo início dos anos 2000, o ego humano parece ter se agigantado dando o tom das relações objetivas e subjetivas que tratam do local e do global na cena contemporânea. Cada dia fica mais claro que, por trás das páginas pessoais, há muitos interesses corporativos das grandes empresas que financiam as redes gratuitas da internet escusos nos algoritmos que lhes constituem.
Se hoje o meio virtual é o guardião de nossas histórias mais secretas e da nossa imagem mais pública, que preço pagaremos pela guarda consignada da nossa memória? Quem nos assegura que no futuro teremos acesso fácil aos nossos arquivos pessoais de textos e imagens que estão online? Será que mantê-los e acessá-los ainda será gratuito? Na falta de máquinas que decodifiquem esses algoritmos, quem garante que seremos capazes de lembrar do nosso tempo e das muitas versões digitais das nossas fotos, textos, sons, entre outros?
O que você anda pesquisando atualmente?
Só duas coisas atualmente atraem minha atenção e curiosidade: as fotos da Curiosity Rover da NASA e uma vontade enorme de um dia cruzar com o carro do Google Street View!
O Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia é um projeto nacional realizado pelo jornal Diário do Pará com apoio da Vale, colaboração da SOL Informática e apoio institucional do Museu do Estado do Pará – MEP, do Sistema Integrado de Museus/Secult-PA e do Museu da UFPA.