Por: Brenda Taketa
“Que corpo é esse que eu carrego comigo”, questiona Marise Maués, ganhadora do prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia de 2015
Ainda aos dois anos de idade, quando se mudou com a família da ilha em que nasceu para a porção mais urbanizada de Abaetetuba, a artista Marise Maués viveria talvez a primeira das principais mudanças que, décadas depois, seriam refletidas – como fragmento de memória, como contentamento do reencontro e reflexão do corpo “atual” – em dois trabalhos feitos na mesma região, o Nóstos e o Loess, o último contemplado com o Prêmio Diário Contemporâneo de 2015 e que este ano será reexibido como parte da Coleção do projeto.
Do centro urbano de Abaetetuba, onde viveu perto dos pais e de oito irmãos do final dos anos 1960 até meados de 1990, Marise sempre retornava com a mãe à ilha de Maracapucu Miri, pois o desejo de ver os filhos se educarem formalmente na cidade era tão grande quanto a saudade que ela sentia do lugar no qual nascera, deixara parentes e aprendera o ofício da coleta de produtos como o açaí e da pesca de peixes e camarões regionais.
Dessas primeiras memórias até o começo do trabalho como artista o trajeto foi longo e passou por um casamento, o nascimento e a criação dos dois filhos, a aprovação num concurso público para trabalhar noutro município do interior e depois a transferência para capital, a graduação no curso de Geografia, o estudo de fotografia por meio de oficinas e uma nova formação na faculdade de Artes Visuais, entre outras experiências que jamais poderão ser resumidas num parágrafo.
Em meio à intensidade de tantas vivências, manteve o hábito de retornar com frequência à Maracapucu Miri, lugar em que expressou por meio da fotografia, do vídeo e da perfomance a relação do corpo com o tempo, com o ambiente e a história, que produzem a identificação dessa “persona ribeirinha que resiste ao cotidiano urbano da cidade de Belém”.
“Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar” (Gilberto Gil)
Foi da nostalgia – “prazerosa, não triste”, explica – desses reencontros com a ilha que o “Nóstos” foi criado.
Posteriormente exibido na mostra “Pequenas cartografias (e 2 performances)” do Prêmio Diário em 2013, o trabalho identifica o próprio corpo de Marise com o corpo de uma árvore de mututi, encontrado próximo a um igarapé.
“Em um de meus retornos à ilha do Maracapucu Miri, me deparei com o velho pé de mututi que emerge do leito do igarapé. Sua aparência esguia e sinuosa revelada pela maré baixa me suscitou a aparência de um corpo feminino desnudo. Com essa constatação quis eternizar minha existência naquela árvore, pelo que cosi suas vestes e com ela envolvi seu corpo e deixei-a no seu lugar de sempre resistindo ao regime cordato das marés. Chegará o dia em que o velho pé de Mututi quedar-se-á no leito do igarapé em obediência a lei que rege qualquer ser vivo”, relata Marise no dossiê de apresentação do trabalho.
A árvore, que segue vestida e em pleno processo de transformação pelas variações no clima, as inter-relações do ecossistema e das mudanças pelo tempo, continua a ser periodicamente fotografada pela artista.
“A árvore representa o meu corpo que está sofrendo a intempérie. É o meu corpo que está lá”, comenta.
“Um homem nunca é o mesmo, permitido-lhe uma existência”
Décadas depois de se mudar a Belém e, diante de uma vida que inclui ser mulher e sustentar afetiva e financeiramente a família, Marise conta que, certo dia, depois de uma discussão que poderia ser banal em sua rotina, teve o corpo tomado pela reflexão “que corpo é esse que eu carrego comigo?”.
Do questionamento à performance, o intervalo incluiu apenas o retorno à ilha da sua história, na qual se propôs a ficar, dessa vez com o próprio corpo, por sete horas ininterruptas no leito de um igarapé, com a finalidade de receber se expor aos regimes de enchente e vazante da maré. Para isso, vestiu-se de branco, cor sujeita a mudanças pela influência das águas características da região e do tempo que as rege.
“Adentrar em um igarapé em um ato performático, passível a ação de agentes naturais possibilitou a materialização imagética de ter meu corpo tecido em camadas que se sobrepunham com o passar das horas, utilizando como cenário o lugar que me viu nascer, crescer e com quem até hoje tenho laços estreitos de convivência, portanto um lugar de afeto”, relata.
Deu ao trabalho o nome de “Loess”, conceito trazido da geologia para definir um tipo de solo arenoso, inconsistente, sedimentado, como referência ao corpo atual e uma reflexão sobre a fragmentação do homem contemporâneo como “ser Loess” – formado por múltiplas identidades em constante processo de modificação.
A OBRA “LOESS” INTEGRA A COLEÇÃO DIÁRIO CONTEMPORÂNEO DE FOTOGRAFIA, EXIBIDA NESTA VII EDIÇÃO.